quinta-feira, 24 de março de 2016

Bihr, Alain e Roland Pfefferkorn (2008), Le Système des Inégalités, Paris, La Découverte.



Faz-se neste livro uma abordagem teórica e metodológica à problemática das desigualdades sociais. Os dados empíricos dizem respeito à realidade francesa; a proposta analítica procura reconceptualizar o ângulo de entendimento deste fenómeno.
A conceptualização das desigualdades sociais, mais do que qualquer outro objecto tratado pelas ciências sociais, está associado ao posicionamento "ético" e "político" do investigador (p.5). Afastando-se do objectivismo positivista, os autores defendem que a forma como se define no plano teórico a ideia de "desigualdade", de "justo e injusto", a leitura histórica que se promove dos factores potenciadores deste fenómeno, subentendem uma compreensão política da realidade. É sobre este pano de fundo epistemológico que a obra evolui.
Os autores começam por esboçar uma definição do conceito de desigualdades sociais:
"Uma desigualdade social é o resultado de uma distribuição desigual, no sentido matemático da expressão, entre os membros de uma sociedade, dos recursos desta, distribuição desigual que se deve às estruturas dessa sociedade e que faz nascer um sentimento, legítimo ou não, de injustiça entre os seus membros" (p.8, tradução própria).
 Embora o fenómeno em causa se meça matematicamente, os procedimentos metodológicos da sua medição implicam limitações importantes na compreensão das desigualdades sociais, promovendo-se no início da obra uma reflexão em torno de duas questões fundamentais: o enfoque analítico e os indicadores usados.
No que toca à primeira dimensão, é referido que o conhecimento produzido nesta área temática tem advindo essencialmente do estudo dos "pobres", enquanto as classes sociais dominantes têm sido muito pouco analisadas, mas também que se privilegia a comparação entre categorias sociais e se negligencia o estudo das desigualdades sociais no interior dessas mesmas unidades de análise.
Quanto aos indicadores usados, os autores promovem uma reflexão acerca de quatro problemas metodológicos: referem que os vários tipos de desigualdades sociais são apenas parcialmente medidos, pois os indicadores disponíveis nem sempre recortam o conjunto exaustivo de factos empíricos constitutivos dessas dimensões analíticas; as diferentes instituições (francesas) usam indicadores que não são muitas vezes coincidentes, pelo que a sua comparabilidade fica comprometida; a categorização das profissões tende a ocultar os grupos sociais que se encontram nos extremos da hierarquia social, dispersando-os por diversas categorias ou incluindo-os em categorias demasiado amplas; alguns dados relativos às desigualdades sociais provêm de inquéritos que não elegem este tema como objecto central, pelo que o tratamento da informação corre o risco de ser cientificamente inapropriado.
As desigualdades sociais são medidas numericamente, mas a sua legitimação enquanto problema social imbrica-se no modo de representação colectivo dessa realidade, na configuração simbólica que assume num determinado contexto. A injustiça das desigualdades quantificadas depende do reconhecimento subjectivo dessa realidade, seja ao nível do senso comum, seja no plano das formulações teóricas e ideológicas. São enunciadas três perspectivas que, de acordo com fundamentos teóricos diferentes, legitimam a existência de desigualdades sociais: a naturalização das diferenças e das desigualdades sociais, ideologia defendida na actualidade pela extrema-direita; o neoliberalismo, segundo o qual, ao contrário da visão política atrás anunciada, deve existir igualdade formal entre os sujeitos, mas que considera as desigualdades reais uma inevitabilidade decorrente dos esforços e atributos individuais diferenciados; uma terceira formulação, a de Rawls, que, segundo os autores, entende que as desigualdades sociais e económicas são legítimas se as condições de existência dos mais desfavorecidos forem, ainda assim, melhores do que as que gozariam se existisse uma situação de maior igualdade.
Bihr e Pfefferkorn criticam o naturalismo supra-social da ontologia da extrema-direita, o cariz demasiado abstracto e pouco rigoroso do sistema de pensamento hipotético de Rawls, mas é na ideologia neo-liberal que mais se atêm. Nesta obra é desconstruída a ideia de que a capacidade e empenhamento individual possam ser entendidos como premissas explicativas da distribuição desigual dos recursos e das possibilidades. A igualdade formal permitiria a cada um, segundo o neo-liberalismo, desenvolver livremente os talentos e as capacidades individuais. Mas até que ponto a desigualdade real funciona ela mesma como um factor que influencia essas oportunidades de investimento e desenvolvimento pessoal? Qual a amplitude da liberdade individual na definição das trajectórias de vida e no acesso aos recursos num contexto societal em que as posições ocupadas na hierarquia social são determinantes na definição de expectativas, necessidades e, sobretudo, possibilidades/oportunidades dos sujeitos? A resposta a estas interrogações é desenovelada através da identificação das principais características sociológicas das desigualdades sociais.
Em primeiro lugar, no plano teórico, os autores procuram demonstrar que as desigualdades sociais têm uma natureza sistémica, isto é, que se geram e reproduzem relacionalmente num espaço social que determina, de forma intensa, o modo assimétrico como os recursos disponíveis se distribuem pelos indivíduos, de acordo com o seu lugar de classe. Neste sentido, é feita uma análise da "interacção" (p.46) entre tipos de desigualdades sociais, para a qual são convocadas treze variáveis usadas simultaneamente como medidas explicativas e explicadas desse fenómeno. Ou seja, partindo os autores do princípio teórico de que as desigualdades sociais formam uma unidade sistémica cujos componentes (tipos de desigualdades) se combinam e reproduzem, procuram apurar a intensidade e encadeamento dessas relações estruturais. Por exemplo, as desigualdades no seio das relações de produção e as de rendimento são as que assumem um maior poder estruturante na produção das demais desigualdades sociais consideradas; as desigualdades face à escola e ao património, por seu lado, embora não sejam das mais estruturantes em termos gerais, explicam intensamente as desigualdades no seio das relações de produção e, neste sentido, contribuem indirectamente para a reprodução do sistema de desigualdades, pois estruturam uma dimensão estruturante desse mesmo sistema.
Para além de se combinarem segundo intensidades e lógicas de estruturação específicas, as desigualdades sociais tendem a acumular-se. Segundo os autores, a posse ou destituição de recursos materiais, simbólicos e intelectuais potencia a acumulação de riqueza ou de pobreza, respectivamente. Verificam que os índices de desigualdade relativos a um conjunto alargado de indicadores tendem a ser bastante uniformes segundo a categoria socioprofissional do indivíduo (pp.56-57): indivíduos com posições semelhantes no mercado de trabalho tendem a apresentar índices de desigualdade próximos. A pertença às várias categorias socioprofissionais resulta de um acesso diferenciado aos recursos disponíveis, por parte de indivíduos socialmente heterogéneos (com proveniências de classe diferentes), mas essa mesma pertença é operativa na reprodução das diferenças e desigualdades sociais. As vantagens e desvantagens reproduzem-se socialmente e polarizam-se no espaço das classes:
"Essas múltiplas dimensões da riqueza formam um sistema, tal como acontece no caso da pobreza, que se reforçam reciprocamente num processo cumulativo. As mesmas relações e retroacções entre as desigualdades, que conduzem à acumulação de desvantagens num dos pólos da hierarquia social, produzem uma acumulação de vantagens e privilégios no outro pólo" (p.66, tradução própria).
A reprodução das desigualdades é precisamente o terceiro vector analítico desenvolvido nesta obra. Embora refiram que a maior parte dos homens e mulheres francese(a)s que, em 2003, tinham entre 40 e 59 anos, pertenciam a uma categoria profissional diferente da do seu pai, concluem que a mobilidade social que se operou nesse processo entre as categorias profissionais dominantes, intermédias e populares foi pouco ampla (pp.88). A reprodução das desigualdades sociais é influenciada pela transmissão hereditária de recursos materiais (as trajectórias ascendentes dos filhos são muitas vezes acompanhadas por heranças económicas elevadas), culturais (formais e informais) e pela dimensão das famílias. Quanto a este último aspecto, é mencionado que os recursos à disposição das famílias variam em volume total e relativo. Os autores chamam a atenção para o facto das famílias das classes populares serem as que têm um maior número de filhos, ou seja, para além de deterem um menor volume de recursos económicos e culturais, estas famílias debatem-se também com o problema da sua distribuição pelos seus descendentes. A divisão dos investimentos económicos e culturais possíveis entre os filhos, reduz as quantidades postas à disposição de cada um deles. Neste sentido, o capital que os filhos das classes populares herdam é de menor valor (em volume e composição), mas esse valor é também mais fragmentado.
As desigualdades sociais mantêm, portanto, entre si, relações de interdependência potenciadoras da sua perpetuação e acumulação. A hierarquização e segmentação das sociedades modernas implicam a existência de conflitualidade entre favorecidos e desfavorecidos. Os autores concluem o livro chamando a atenção para a dimensão simbólica desta luta, pela qual se define o que é politicamente aceitável e inaceitável, se parametrizam as "normas de legitimação da ordem social" (p.105).

Frederico Cantante